terça-feira, 20 de março de 2012

A construção do conhecimento físico


A ciência é uma maneira de entender o mundo a nossa volta. Contudo, não é a única. As religiões, as artes, a filosofia, entre outras, são alternativas que também constroem uma visão específica sobre a natureza e de como o ser humano está inserido nela. Mas elas são muito diferentes da ciência.
A característica principal do pensamento científico é que as suas afirmativas, proposições e teorias não são absolutas, mas sempre relativas. Os modelos científicos devem sempre ser confirmados, seja por experimentos ou observações que deem sustentação aos postulados e às ideias dos cientistas.

Além disso, as teorias físicas são válidas também ao longo do tempo. Ao observar as galáxias que estão muito distantes, há milhões de anos-luz (um ano-luz corresponde à distância que um raio de luz percorre durante um ano e equivale aproximadamente a 10 trilhões de quilômetros), não as vemos como elas estão nesse exato momento, mas sim como eram quando a luz partiu delas e viajou por milhões de anos, até chegar a nós.
Dentre os diversos ramos da ciência, a física, com a sua visão peculiar, é a que entende os fenômenos físicos na sua forma mais fundamental. As suas teorias são capazes de explicar situações que vão da escala atômica até o universo como um todo.
Quando observamos o céu, estamos olhando para o passado. Ao analisar o espectro eletromagnético das estrelas de uma galáxia, identificamos os elementos químicos da mesma maneira que o fazemos aqui na Terra. Os resultados mostram que as leis físicas funcionam da mesma forma aqui e lá. De fato, os modelos físicos, até agora, funcionam da mesma maneira em qualquer lugar no espaço e no tempo.

Grandes rupturas

Os avanços das ideias ocorrem continuamente na física. A cada semana, milhares de artigos são publicados nas revistas científicas, apresentando novos resultados experimentais e modelos teóricos para explicar fenômenos físicos ou ainda propondo novos que não foram descobertos ou observados. Cabe aos físicos, muitas vezes, imaginar uma forma de comprovar ou refutar as teorias propostas.
Entretanto, em determinados momentos, surgem descobertas ou aparecem novas ideias que podem revolucionar a física. Segundo o filósofo da ciência estadunidense Thomas Kuhn (1922-1996), uma revolução científica acontece quando existe uma mudança de paradigma, ou seja, um determinado modelo ou conjunto de teorias se mostra esgotado para explicar novos resultados.

pato-coelho
Thomas Kuhn usou a ilusão de ótica do pato-coelho para demonstrar a maneira pela qual uma mudança de paradigma pode fazer uma pessoa ver a mesma informação de uma forma totalmente diferente. (imagem: Wikimedia Commons)
Uma dessas revoluções aconteceu no começo do século passado, quando o físico Albert Einstein (1879-1955) apresentou a sua teoria da relatividade. Essa teoria, já discutida em outras ocasiões nesta coluna, apresentou uma maneira diferente de entender os fenômenos físicos.
Na época, Einstein estava preocupado com a incompatibilidade que existia entre a chamada mecânica clássica, que foi desenvolvida primeiramente por Isaac Newton (1642-1727), e a teoria eletromagnética, consolidada pelo físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879).
A primeira descreve os movimentos dos corpos. A segunda explica o comportamento dos campos elétricos e magnéticos, mostrando que a luz é uma manifestação desses campos. Contudo, a abordagem das duas teorias simultaneamente se mostrava incompatível, embora os resultados experimentais da época confirmavam as previsões de ambas.
Einstein propôs, então, uma mudança de modelo, ou seja, introduziu novas ideias que permitiram remover as incompatibilidades existentes entre as duas teorias. Ele propôs que as leis físicas são válidas para todos os referenciais inerciais (referenciais que estão em repouso ou se movimentando com velocidade constante) e que a velocidade da luz é constante, independente do referencial do observador.

A teoria da relatividade foi tão bem-sucedida que milhares de experimentos verificaram as suas previsões. Mesmo os resultados recentes do experimento Opera (
comentando em outra coluna), que supostamente detectaram neutrinos viajando mais rápido que a luz, foram contestados devido a possíveis falhas nos equipamentos.Em consequência desses dois postulados, os conceitos de espaço e tempo tiveram que ser alterados e estabeleceu-se uma velocidade limite para o universo: a velocidade da luz.
No entanto, mesmo se os resultados forem de fato confirmados, os postulados de Einstein não serão completamente descartados, mas deverão, sim, ser modificados, da mesma forma que o físico modificou os postulados da mecânica clássica.

Entre validações e refutações

Atualmente, muitos estudos estão sendo realizados para testar os limites das teorias correntes. Entre eles destacam-se os experimentos que vêm ocorrendo no Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), construído com o objetivo de encontrar partículas fundamentais da matéria que somente podem ser observadas em condições muito extremas – de altas densidades de energia.
O grande objetivo do LHC é encontrar o famoso bóson de Higgs. Essa partícula, prevista teoricamente na década de 1960 pelo físico britânico Peter Higgs, ainda não tem confirmação experimental. A sua descoberta validaria por completo o chamado Modelo Padrão, que explica o comportamento das partículas subatômicas.
A detecção do bóson de Higgs comprovaria a existência de um campo invisível que, de acordo com o Modelo Padrão, estaria presente em todo o espaço. O campo de Higgs explicaria a forma como a matéria obteve massa após o Big Bang. Explicando de onde vem a massa de todas as partículas, poderemos finalmente compreender o porquê da existência das estruturas do nosso universo, das estrelas, dos planetas e dos seres vivos.
Mais recentemente, cientistas do FermiLab, o laboratório de física de altas energias mais importante dos Estados Unidos, relataram a observação de resultados que seriam indicação da presença da misteriosa partícula, mas eles ainda não são definitivos e necessitam de confirmação. 

Fermilab, EUA
Anéis aceleradores do Fermilab, laboratório de física de altas energias dos EUA. Recentemente, pesquisadores da instituição detectaram indícios da presença do bóson de Higgs, uma das partículas mais procuradas. (foto: Reidar Hahn/ Fermilab)
Por mais atraente e charmosa que essa ideia possa ser, se os experimentos mostrarem que tal partícula não existe, o Modelo Padrão deverá ser reformulado. Uma nova teoria terá que surgir. E essa nova teoria deverá abranger todos os resultados que o atual Modelo Padrão explica, como as interações fundamentais entre as partículas elementares.
Esse processo de validação e refutação de teorias é que garante que a física, e a ciência em geral, avance. Diferentemente de outras formas de conhecimento, como a religião, em ciência, nenhuma verdade é absoluta ou definitiva; todas são relativas e podem sempre ser revistas.
Einstein, que é o aniversariante da semana, ficaria certamente feliz com os resultados que ainda confirmam e validam suas ideias. Mas também, muito provavelmente, ficaria excitado com um novo desafio a enfrentar.
 

Entre a biologia e a cultura


“Somos o que comemos”, diz o famoso aforismo proferido pelo filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872). No entanto, se considerarmos os aspectos biopsicossociais e culturais relacionados à alimentação, é possível afirmar que “comemos o que somos”. Isso porque nos alimentamos não só do que nossos organismos necessitam, mas também (e principalmente) do que nos proporciona prazer, do que é financeiramente acessível e do que é permitido pela cultura em que nos inserimos.
Cientes de que os alimentos, além de nutrir, significam e comunicam, os antropólogos Jesús Contreras, da Universidade de Barcelona, e Mabel Gracia, da Universidade Rovira e Virgili, ambas na Espanha, lançaram, em 2005, o livro Alimentação, sociedade e cultura, agora publicado no Brasil pela Editora Fiocruz. Nele, os autores apresentam algumas contribuições de sua área de pesquisa – a antropologia social – para melhor compreender o fenômeno alimentar. Analisam os condicionamentos e a variabilidade cultural dos comportamentos alimentares e abordam questões ligadas à distinção social e ao culto do corpo, entre outras.
O livro mostra como a alimentação oferece um campo de estudo privilegiado para a análise das relações entre natureza e cultura. Uma das principais formas de entender o funcionamento de uma sociedade é conhecer os modos de obtenção dos alimentos, quem os prepara e como, e onde, quando e com quem se come. Todos esses fatores dependem de onde se vive – condição que determina as opções dietéticas e, em consequência, as adaptações fisiológicas que reforçam essas escolhas.
A tolerância à lactose é um exemplo. Estudiosos defendem que, a partir da Revolução Neolítica (que marcou o fim do comportamento nômade), parte da população convertida em pastores e agricultores passou a consumir leite regularmente, e uma mutação que favorece a tolerância ao alimento foi passada para as gerações seguintes como vantagem adaptativa.
De modo semelhante, verifica-se uma intolerância ao trigo na Grã-Bretanha e na Índia, áreas mais distantes do cultivo desse cereal na Eurásia, o que sugere que a incapacidade de digestão esteja relacionada à seleção natural.

Cultura como fator determinante

Mais do que ser regulada por aspectos biológicos, a alimentação está estritamente relacionada à cultura, como apontam as preferências e aversões em relação ao consumo de proteínas, por exemplo. Para alguns, é inconcebível incluir na dieta insetos ou carne de cachorro, prática comum para muitos povos asiáticos. Para outros, pode ser difícil abdicar da carne de porco, como fazem os praticantes de determinadas religiões, ou de vaca, como ocorre na Índia.

Vaca
Entre os aspectos culturais da alimentação estão as próprias preferências e aversões a determinados alimentos. Na Índia, por exemplo, não se come carne de vaca. (foto: Kym McLeod/ Sxc.hu)
A alimentação serve também como forma de classificar e hierarquizar pessoas e grupos. Para Contreras e Gracia, esse processo de diferenciação social ocorre pelo sentido dado aos produtos ou pela codificação sociocultural adotada nas diferentes classes sociais. Imigrantes de regiões distintas residentes na mesma área metropolitana, por exemplo, escolhem o cardápio para um encontro familiar de acordo com sua origem.
“É como certos pratos que se convertem em pratos totem, incorporando um valor simbólico muito peculiar que faz deles uma chave de identidade cultural, indicadores da especificidade e da diferença. Esses pratos recriam uma identidade, e as reuniões para degustá-los em grupo recriam uma comunidade de origem que existe, precisamente, como consequência da imigração”, observam os autores.
O simbólico aparece ainda nas categorizações criadas para os alimentos, que se dividem em saudáveis e não saudáveis, ordinários e festivos, femininos e masculinos, adultos e infantis, puros e impuros, sagrados e profanos etc. Por meio dessas classificações, apontam Contreras e Gracia, constroem-se “as normas que regem nossa relação com a comida e, inclusive, nossas relações com as pessoas”.
Essas complexas conexões sugerem a estreita vinculação, no ato de se alimentar, entre o ser biológico e o ser social. Daí vem, segundo os autores, a importância da antropologia da alimentação, campo de estudo que tende a se consolidar com o interesse e a preocupação, cada vez maiores, das sociedades contemporâneas por assuntos relacionados à nutrição e à dietética. O livro mostra que a contribuição da pesquisa nessa área pode ser fundamental para a melhoria da saúde e da qualidade de vida, a manutenção de identidades locais e a redução de preconceitos, de temores e até dos riscos ligados ao que comemos.